“Ustra obtém direito de ficar calado na Comissão da Verdade
Brilhante Ustra, coronel reformado e ex-comandante do DOI-Codi-SP entre 1970 e 1974, obteve nesta quinta-feira (9) na Justiça o direito de ficar calado na audiência pública que a Comissão Nacional da Verdade fará com ele amanhã.
O advogado Octávio de Freitas Costa afirmou que ele recorreu ao direito constitucional de ficar calado”
A lógica é que, chamado a depor, o coronel poderia ser obrigado a produzir provar contra si.
Foi o que ocorreu inúmeras vezes com pessoas que, intimadas como testemunhas por CPIs, eram tratadas como suspeitas e de lá saíam presas ao se recusarem a responder perguntas depois de terem prestado o compromisso de dizer a verdade. Daí passarem a comparecer munidas de habeas corpus: a liberdade de ir e vir estava sendo ameaçada ilegalmente.
A Constituição garante o direito de não constituir prova contra si mesmo.
E é aí que entra a sutileza do problema: a Comissão da Verdade visa apenas apurar os fatos. Ao contrário do que ocorre em um processo penal, civil ou administrativo, ou em uma CPI, ela não visa (e não pode) impor sanções e seu material não pode ser utilizado para isso. Seu objetivo é apenas trazer à superfície os fatos históricos.
Se a Comissão da Verdade não tem poderes de condenar ou estabelecer culpa, não há ameaça contra a liberdade de ir e vir dos depoentes. Não há um cerceamento de liberdade possível. Daí o habeas corpus não fazer sentido.
A Comissão da Verdade é algo inusitado em nosso universo jurídico. Algo que ainda estamos tentando compreender tanto do ponto de vista jurídico quanto social.
Em termos técnicos, ela é uma adaptação do coroner inquest, comum nos países influenciados pelo direito inglês, e que se tornou mundialmente famoso com a Comissão de Reconciliação e Verdade da África do Sul no pós-apartheid.
A ideia do coroner inquest, como da da Comissão brasileira, é que, ao se apurar as circunstâncias e causas das mortes violentas e não naturais, pode-se finalmente entender o que se passou. Dá às famílias a possibilidade de fecharem o ciclo de luto, e à sociedade o mecanismo para aprender com o passado e evitar novas erros futuros. Seus relatórios –já que não produzem sentenças- não emitem opiniões a respeito de culpa civil ou penal.
Mas para que alcance seu objetivo, e justamente porque ele não existe para incriminar, precisa haver o compromisso de dizer o que se sabe.
Do ponto de vista social, quanto mais se prolonga o processo, menor a possibilidade de se apurar a verdade, não só porque o tempo dilui os fatos e as memórias, mas também porque o processo de apuração em si se torna tóxico.
Mas, então, por que ele foi concedido? Porque há a possibilidade de que em crimes permanentes, como a ocultação de cadáveres que ainda não foram encontrados – haja processos e condenações no âmbito penal, como já explicamos aqui. Esses processos não teriam nada a ver com a Comissão da Verdade, mas fatos revelados à Comissão poderiam ser usado naqueles processos.
E aí entra uma questão de política pública. A condenação pela ocultação de cadáver é baixa (máximo de três anos de reclusão). Na prática dificilmente alguém ficaria de fato preso por conta dessa condenação. Ela seria apenas uma formalidade. Vale a pena manter o drama de não se saber o que aconteceu e possibilitar as famílias e a sociedade a irem adiante apenas pela possibilidade de condenarmos um ou alguns poucos indivíduos? Ou não faria qualquer diferença porque esses indivíduos não colaborariam ainda que soubessem que jamais seriam punidos?
A favor da primeira, temos a experiência da própria Lei de Anistia, que possibilitou o início do processo de redemocratização. A favor da segunda temos o que aconteceu ontem quando, ainda que munido de habeas corpus, o coronel reformado falou, expôs suas opiniões, mas não deu nenhuma informação factual relevante.